domingo, 21 de junho de 2009

Fantasiada Realidade

Eu, assustadoramente, sabia o que aquelas palavras ecoando na minha cabeça deveriam significar.
Eu não queria pensar nelas, não queria muito menos ouvi-las de novo.
Tudo que costumava ser extremamente colorido pra mim, se tornava gradativamente cinza chumbo.

Mordia meus lábios furtivamente.
Eu, assustadoramente, sabia que a culpa era toda minha.
A Rainha de Gelo pomposamente sentada em um trono de arrogância, era isso que eu certamente veria se encontrasse um espelho no meu caminho.
Mas agora eu não estava certa se haveria um caminho pra mim, muito menos um espelho. Então, me mantive ocupada por um tempo tentando imaginar o que eu gostaria de ver nesse espelho além da Rainha de Gelo, você sabe, possibilidades são sempre uma deliciosa ilusão.
Então eu me concentrei em imaginar, e quando eu consegui formar imagens mentais naquele grande espelho vazio na minha mente, foi um grande baque. Eu finalmente vi o no que eu adoraria me transformar, eu vi claramente o que eu mais desejava ser. E isso doeu.
Eu conseguia ver claramente por trás das minhas pálpebras, uma menina comum sentada em um meio fio. Ela abraçava seus joelhos, mas esse gesto de forma alguma tinha um tom preocupado, era mais sereno que isso, era como se abraçando os joelhos ela conseguisse se manter firme o suficiente.
Os olhos dela se perdiam em algum lugar que o meu espelho não conseguia refletir, era bem além, era como se ela soubesse exatamente onde terminava a linha do horizonte e mantivesse seus olhos distraidamente nesse ponto, e foi aí que eu reconheci que eu queria ser essa garota, por um detalhe muito simples: seu rosto calmo carregava certa malícia, tinha um riso oculto que traduzia perfeitamente seus pensamentos, era como se ela falasse, com a voz suave que ela certamente tinha, "seus bobos, se perdem em todas essas coisas, mal sabem que a paz de que precisam está aqui comigo". Ela fascinava, e nem se esforçava pra isso.

Mas eu balancei a cabeça como se pudesse afastar aquelas imagens que eu tinha criado, mas era tarde demais, as lágrimas brotavam. Eu sentia toda a culpa de uma existência completamente vazia, era como se eu até agora fosse um zumbi, ou qualquer desses seres míticos.
Eu me dei conta de que não podia ficar me prendendo nessas questões, eu tinha uma missão, que mesmo aos prantos, era importante demais.
E se eu conseguisse mover minhas pernas, seria ótimo, mas eu não conseguia. Na primeira tentativa, meus joelhos tremeram de um jeito esquisito, nunca havia sentido aquilo, e o medo me pôs de volta na posição inicial, eu podia querer acabar com tudo isso, mas ainda não tinha perdido completamente o bom senso.

Tentei me recompor aos poucos, esvaziando os pulmões e tornando a enche-los de ar fresco. Fiz isso quantas vezes achei necessário, e quando senti as lágrimas secarem nas minhas bochechas, vi que estava pronta pra ir.
Então eu abri a porta e segui para o meu destino, e era engraçado usar essa palavra. Em toda minha vida eu só me lembro de tê-la evitado, mas agora eu tinha usado ela, mentalmente, mas tinha.
Sai para a rua de um fôlego só, Deus sabe o quanto eu queria ser rápida o suficiente para não ser alcançada pelo arrependimento.
Fui caminhando, tendo toda certeza de que evitei as linhas de ônibus no intuito de poder elaborar um pouco melhor as minhas ações, mas minha mente estava trabalhando de forma tão aleatória que não pude prestar atenção nos meus pés, e mais rápido do que eu previa, eu cheguei onde eu queria.

Mordi meus lábios de novo, mas dessa vez foi forte demais, senti o gosto de sangue. A dor não me incomodava, eu estava perdida demais para sentir dor. Eu sabia que teria que entrar cedo ou tarde, e sabia que provavelmente estava sendo dramática demais, então sentando em um desses cercados de árvore bem baixos, eu comecei a organizar minha cabeça.
Eu estava agora na frente da minha casa, dentro dela estavam as pessoas mais importantes para a minha existência, e tudo que eu precisava fazer era entrar ali e tentar começar a resolver os meus problemas.
Agora, ouvindo minha voz mental repassar esse plano, parecia assustadoramente egoísta e arrogante, ainda soava muito como a Rainha do Gelo, e combinava com ela também. Oportuno demais entrar em uma casa, cheia de pessoas fragilizadas que não me viam a mais de uma semana e disparar acusações petulantes, colocando sobre os ombros deles todas as minhas falhas morais. Com toda certeza do mundo, isso era a Rainha do Gelo.
Eu sorri, não estava feliz, nem calma... mas me analisar assim com tanta frieza era, com toda certeza, novo e assustador. Mas com todo o espanto que essa analise me causava eu só conseguia rir, e no minuto seguinte que percebi isso, eu senti nojo.

Nada estava certo no meu plano, eu só queria entrar batendo a porta pra gritar com todos, depois eu sabia que iria chorar, desabar e ficar mole como antes, mas eu queria acabar logo com isso. Eu conhecia as pessoas lá dentro, apesar do grande barulho inicial, tudo que eles fariam depois era me deixar chorar quieta, como sempre.
Eu teria colo, conforto, carinho. Tudo que eu sentia falta, na exata medida que eu precisava. Seria um problema resolvido.
No resto eu pensava depois, ou simplesmente não pensava. Não seria tão ruim, e quem eu pensava que era pra tentar resolver todos meus problemas de uma hora pra outra? Tinha que sobrar alguma coisa.

Eu estava nervosa demais, ansiosa demais.
Eu colocava a perna entre meus joelhos, tentava focar no meu plano, meu egoísta e mesquinho plano, mas não conseguia mais. Foi só pensar em evitar meus problemas, os segundos problemas, que eles se sentiram ofendidos e se fizeram fortes na minha lembrança.
É como se eles gritassem a plenos pulmões todas as verdades que eu não queria ouvir. Eu não precisava ouvir aquela voz enjoada me perguntando com aquela petulância conhecida, afinal era minha, "que tipo de pessoa se declara passional, sem nunca ter se entregado a qualquer paixão?", eu não podia ouvir o meu subconsciente me pregando peças do tipo "está tudo perfeitamente normal... exceto pelo seu medo descontrolado que ainda vai acabar te presenteando com um enfarto". Eu certamente estava farta, queria explodir, e foi exatamente isso que aconteceu: eu explodi em choro outra vez, dessa vez as ondas de lágrimas ácidas e cortantes vieram com soluços fortes o suficiente para acordar o bairro todo, só agora eu percebia como era cedo.
Respirei fundo pela última vez naquele dia, estava decidida que seria aquele o momento de encenar meu show, tudo em busca de redenção pessoal. Eu era definitivamente egoísta.
Foi nesse momento que eu senti uma mãozinha frágil tocando meu braço.
Eu olhei, um misto de curiosidade e medo fazia meu estômago se mover dentro de mim.
Eu me surpreendi até certo ponto, mas depois, colocando a cabeça em ordem, eu senti que aquele era o gesto que eu estava esperando desde o principio.
Parado ali, em pé ao meu lado, estava a criança mais atípica do mundo.
Ao mesmo tempo que mostrava as estruturas tão frágeis dos seus sete anos, escondia naquele olhar inocente que eu bem conhecia uma fortaleza. Eu sabia disso, porque muitas vezes era lá que eu ia me esconder.
Então sem dizer uma palavra, aquele garotinho com os olhos sonolentos e o pijama amassado se jogou no meu colo, como se ainda estivesse na sua própria cama e voltou a dormir.
Eu, imóvel como uma estátua, paralisada naquele momento pelo medo de acordar o meu pequeno anjo, senti que meu show era totalmente desnecessário: eu não precisava de perdão.
Aquela presença, trazia pra dentro de mim todo o conforto e paz que eu precisava pra pensar, e num momento. Tudo ficava claro.
Eu sabia que ia continuar imperfeita.
Errando.
Me ferindo e ferindo aos outros.
Mas agora eu tinha uma arma que simultaneamente era a razão perfeita para que aos poucos eu pudesse quebrar o meu gelo.
Eu senti que as coisa pra mim podiam se tornar verdadeiras, sólidas.
Eu sorri, agora era de verdade.
Eu não tinha mais medo.